segunda-feira, 24 de março de 2008
Sirius
O sol começava a nascer e a esquentar as costas nuas de Lúcia, quando ela percebeu que estava voltando pra casa alugada por um caminho que não conhecia. Não conseguia nem distinguir muito bem por que lado da rua ela viera, mas se lembrava vagamente de uma padaria bem pequena com um carinha rechonchudo que, por um segundo apenas, a olhou. Ela só não sabia muito bem se ele desviara os olhos pra não se cegar, por causa do brilho excessivo das suas roupas, ou se foi por algum tipo de nojo. As idéias estavam mesmo bastante embaralhadas, e ela resolveu dar meia-volta de onde estava e pegar o caminho contrário. Achava meio perigoso pedir informação.
Depois de bastante tempo andando, ela viu de novo a pequena padaria. Sabia que era aquela por causa daquele cachorro preto que ficava enfrente à porta, e parecia sempre ter estado ali, como se fizesse parte do cenário. A sua barriga magrela automaticamente roncou; o barulho foi alto, e o cachorro balançou a cabeça, como se concordasse com a fome que ela sentia. Resolveu entrar.
Não tinha ninguém no balcão. Não tinha ninguém por perto. Parecia que o dono era o cachorro, que a vigiava de longe. Mas não era, não. Deu uma volta pela padaria, olhou os pães, umas torradas, uma geladeira cheias de refrigerantes. Até decidir pedir mesmo uma boa média e um pão bem quente com manteiga à beça. Precisava acordar.
Não demorou muito, o carinha rechonchudo apareceu, com um sorriso que congelou assim que a olhou. Congelou e se desfez. Os olhinhos embotados logo tomaram destaque na cara vermelha. Vermelha não, roxa. Ele queria... Ele queria segurar aquele pescocinho frágil e imundo, arrebentar aquela cara mal-lavada, maquiada, torcer aquele corpo esguio e cheio de pecados. E foi exatamente o que ele fez, não sem antes empurrá-la pro outro lado da rua, em meio à gritarias e choros, tumulto e sangue, com a certeza cega de que estaria limpando a sujeira.
Duas mulheres choraram e foram embora, uma outra assistia horrorizada à cena, trêmula, sem conseguir se mexer. Não havia mais ninguém na rua. Ninguém que pudesse fazer qualquer coisa, ou que quisesse. Só havia o cachorro, com a mesma cara triste, no mesmo lugar, olhando tudo com uma despreocupação vil.
Lúcia sabia o que estava acontecendo, sabia por que estava acontecendo. E mesmo assim não conseguia se concentrar na dor, relembrando de olhos fechados seus próprios movimentos mecânicos da noite anterior, vendendo o seu corpo pra uma dança meio animal, meio natural, e só conseguindo pensar em contas e contas e contas, o suor escorrendo pelos cabelos, umas unhas entrando em sua carne, e contas. E agora apanhava pelas contas, morria pelas contas, e ainda sonhava com as contas. Ele em cima dela, terminando o que havia começado, com o punho ensangüentado.
A moça da esquina não estava mais parada e por causa dela o som de sirenes cortavam o ar, machucando os ouvidos. Não os de Lúcia, que não se dava conta. Não porque não quisesse, mas porque não podia.
Os policiais também fizeram o seu trabalho, rápido, sem muitos desafios. O cara da padaria aceitava sua condição de assassino, e ria. Ria pro cachorro, que se levantou e foi deixar-se cair ao lado de onde o corpo de Lúcia estava, sem mais sair, voltando a fazer parte de um cenário macabro.
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